Dom Pedro Brito Guimarães
Arcebispo de Palmas – TO
“Grande dúvida, grande iluminação.
Pequena dúvida, pequena iluminação.
Nenhuma dúvida, nenhuma iluminação” (expressão chinesa).
Já estou sonhando com o mundo pós-pandemia. Preciso sonhar, mesmo que pareça acreditar em milagres. Milagres existem. Tenho que acreditar em milagres. Prefiro acreditar em milagres a acreditar em outras coisas.
Sonho como o cardeal Luís Antônio Tagle: “a pandemia fechou muitas portas, mas abriu muitas janelas”. Bem ou mal, a saída desta crise pandêmica pode ser comparada à saída de Jacó, por orientação de sua mãe, após receber a bênção do seu pai, Isaac, em busca de uma esposa para se casar. Chegada à noite, devido ao cansaço, fez do mundo a sua hospedaria, do chão o seu colchão, da pedra o seu travesseiro. Deitou-se, adormeceu e sonhou com Deus (Gn 28,10-12). Qual rede, sinal e código de comunicação, nesse seu sonho, Jacó viu uma escada entre Deus e a humanidade, ligando o céu e a terra. E por ela, os anjos desciam e subiam. Neste lugar ele ergueu um altar e lhe deu o nome de Betel (Casa de Deus). Este seu sonho é referência na vocação de Natanael (Jo 1,51).
Associo também o meu sonho ao autor do Salmo 126 que, na sua oração de súplica e de agradecimento, pela volta dos exilados, da Babilônia à Jerusalém, disse: “Os que semeiam entre lágrimas ceifarão com alegria” (v. 5). Depois de um tempo de confinamento, ao voltar à sua terra, o povo teve que aprender a recomeçar, a reaprender a viver, a reencontrar o sentido da vida, a se relacionar e a cultuar o seu Deus.
Ultimamente tenho sonhado com três emergências pastorais e espirituais. E este meu sonho está me fazendo gastar muitas energias: Onde os pobres irão dormir? Onde as crianças irão estudar? Onde os fiéis irão rezar?
Onde os pobres irão dormir? Não consigo dormir sem pensar onde os pobres irão dormir. Dormir é viver. Sono é vida, é qualidade de vida. Sem dormir ninguém vive. “Confinamento para rico é férias; para pobre é fome” (Paula Schmitt). Alguém sabe me dizer quais são as políticas públicas para quando terminarem as cestas básicas e os auxílios emergenciais? Como irão viver os desempregados, os que vivem nas informalidades e os “invisíveis”? Toda segunda-feira, quando me encontro com a pessoa que trabalha, em minha casa, lhe pergunto: “como foi o forró, a balada do final de semana?” Ela sempre me responde: “não tem mais não. Quem dançou, dançou. Quem não dançou, não dança mais”.
Onde estudarão as crianças? “Estudar” aqui é cultura, ciência, sabedoria, lazer, convivência, formação, catequese. E “criança” aqui é toda pessoa, mas, principalmente elas, nos bancos das escolas da vida. As crianças estão assustadas, mais do que nós, adultos. Esta é a primeira crise que elas enfrentam. Elas terão medo da Covid-19, qualquer que seja o número. Este vírus vai deixar marcas profundas nas suas vidas, para o resto da vida. Meu pai trazia marcas das secas de 1915 e 1917. Não por acaso, seu filho escolheu, como lema do seu episcopado, Sitio (tenho sede). O fato é que estamos atravessando um apagão educacional. Quantas desigualdades no campo educacional! É bom também ter em mente que o Papa Francisco nos orientou sobre o Pacto pela Educação Global: “Para educar uma criança, é necessária uma aldeia inteira” (provérbio africano). Que nos bancos das Escolas, presenciais ou virtualmente, as crianças aprendam a cuidar umas das outras, a crescer, a multiplicar e a domesticar a terra. E com elas, passemos do desprezo, do preconceito, da indiferença, da ideologia à cultura do apreço, do cuidado, do acolhimento e do encontro.
E onde rezarão os fiéis? “Rezar” aqui é a bandeira da eclesialidade. Em tudo o que dissemos antes deve ter a marca da ekklesia: de uma Igreja regenerativa, tipo “Hospital de Campanha”, como já me reportei anteriormente: diagnosticar (identificar os sinais dos tempos, descobrir como os sofrimentos nos ensinam); imunizar (oferecer remédios preventivos, investir mais na qualificação de profissionais de primeiros socorros da vida); e ajudar na convalescença e na reabilitação (curar as feridas e os traumas de quem está doente e incidindo nos corações com o Evangelho da misericórdia, do perdão e da reconciliação). Nosso povo está doente. Como vamos curar tantas feridas, tantas doenças? Como ajudá-lo na travessia deste “novo normal”? Precisamos ter cabeça que comande, pés que andem e coração que ame. Uma Igreja sem cabeça, sem pernas e sem coração não dará conta de cuidar das pessoas no pós-pandemia. Em que Igreja as pessoas irão rezar? Por quais portas irão entrar e sair? Em quais bancos irão se sentar? Em quais distâncias irão ficar uma pessoa das outras? E quais insumos para as abluções? Desta quarentena, que nos foi imposta pela pandemia do coronavírus, devemos sair todos curados e saudáveis, de corpo e de alma, de mente e de coração, de todas as doenças.
Concluo dizendo que ultimamente muito se ouve dizer: “vai passar!” Este é o meu sonho. Assino em baixo. Só queria, dizer, a este respeito, que não vai passar da nossa vida aquilo que na nossa vida não passou. Se esta pandemia passou pela nossa vida, ela passará. Se não, não passará. Na sua vida essa pandemia foi “a noite escura da alma”? – para usar uma expressão de São João da Cruz. Por que a pandemia passou em sua vida, você entrou em crise? Pareceu que Deus não existia? Pareceu que sua fé não funcionou? Pareceu que sua oração não foi ouvida? Sua vida pareceu um livro mudo?