Por ocasião da celebração de um centenário: duas singelas sugestões

Escrever ou falar sobre dom Hélder Câmara será fácil ou difícil em decorrência do ponto de partida ou do ângulo de visão de quem pretenda assumir essa tarefa. Será fácil, porque, independente de quanto já se escreveu ou já se disse, ainda resta muito que dizer ou escrever. Difícil, porque a vida, a pessoa, a própria personalidade, os gestos e atitudes de Dom Hélder, os seus ideais e, sobretudo, as suas intuições se projetam para além dos nossos tempos e até das realizações (algumas verdadeiramente revolucionárias) que ele em vida conseguiu levar a termo, consolidar e perpetuar até os nossos dias.

Daí porque bem mais do que a escreverem uma página ou artigo, melhor seria incentivar os seus admiradores – graças ao bom Deus, tão numerosos! – a aprofundar, a interpretar para depois transmitir às novas gerações não apenas a sua biografia mas principalmente os horizontes que ele divisou e visualizou de maneira a possibilitar-lhes a realização do que nele, por sinal, também já era vida.

Esse, o legado maior e o verdadeiro desafio que ele nos deixou e que despertaria uma atração maior e comunicaria especial encanto às solenidades comemorativas do primeiro centenário do seu nascimento no dia 7 de fevereiro deste ano. Tal encaminhamento ajudaria a construirmos o Brasil dos seus e dos nossos sonhos e poderia reavivar na Igreja a face de Cristo, luz do mundo ontem, hoje e para sempre. (Hb 13,8)

Supondo já assumido, sobretudo pelo grupo de Recife, o desafio acima insinuado, limito-me agora a uma contribuição bem modesta ao livro que deve ser lançado aqui em Fortaleza por ocasião das comemorações do próximo dia 7.

Trata-se de uma sugestão muito singela mas que importa, se aceita, seja realizada integralmente. Quero dizer: que a obra apresente de entrada a lista, ou seja, a relação completa, exaustiva, de todos os títulos de “Doctor Honoris Causa”, de todos os prêmios, de todas as menções honrosas, de todos os cargos e encargos, no campo religioso (não só católico) e civil que lhe foram conferidos, seja no Brasil, seja em outros países que de diversos modos o homenagearam.

Não disponho infelizmente de todos esses dados. De uma coisa, porém, tenho certeza: assim publicados, eles ocupariam espaço não de uma senão de muitas páginas, deixariam claro a grandeza de Dom Hélder e por não serem o parecer ou um parecer, julgamento ou opinião de uma pessoa por mais competente ou autorizada e sim o julgamento de instituições, muitas delas de grande isenção e alta competência, representariam por tudo isso e por isso mesmo um singular e privilegiado encômio, um altíssimo louvor e o reconhecimento mais abalizado da grandeza ímpar do nosso homenageado.

Outra sugestão, em continuação à que acaba de ser exposta e a ela semelhante, porém muito mais exigente seria um estudo minucioso, exaustivo, da história, do que motivou, do quanto significou, das circunstâncias em que lhe foi conferido ou outorgado, cada título, cada prêmio, cada menção honrosa, cada cargo ou encargo.

Só para se entender melhor: considerem-se, por exemplo, quantos apelos, quantas sugestões, quantos pedidos que lhe fosse conferido, em dado momento e no auge do seu prestígio no plano internacional, o Prêmio Nobel da Paz! Quem, efetivamente, mais do que Dom Hélder, mais justa e acertadamente o teria merecido naquele exato momento? Estava-se, porém, nos tempos do regime autoritário de exceção, e o nosso Dom Hélder tivera a coragem, a ousadia, cometera aos olhos dos detentores do poder o atrevimento inconcebível, a imperdoável loucura, o crime nefando de lesa-pátria de denunciar em Paris, logo em Paris a prática de torturas, de atentados contra a liberdade e a democracia no país que é o nosso Brasil, a nossa Pátria estremecida, e o fizera perante uma multidão de milhares de pessoas que passariam a notícia a todos os países. Exige certamente muito esforço, grande discernimento, apurado critério, inteira isenção de ânimo, coragem e honestidade a toda prova, paciência e perseverança a realização desta idéia. Mas uma coisa é certa: realizada, ela nos dará a imagem perfeita, um foto a corpo inteiro de Dom Hélder com resultados previsíveis, será um exemplo ideal capaz de empolgar a nossa juventude e uma glória autêntica não só para Fortaleza, sua cidade e berço, para o Recife, ou para o Rio de Janeiro mas para todo o Brasil e quiçá para a América latina, sem esquecer também que para a Igreja católica como tal.

Porque esse estudo apontaria ao mundo o cidadão universal que ele era, o defensor dos direitos humanos, o indormido arauto da justiça e da paz, o promotor atento da comunhão entre os povos, o profeta maior do século XX. Recordaria igualmente as suas grandes obras: a Cruzada de São Sebastião, a fundação e atuação do Banco da Providência, o seu papel de primeira importância de Secretário Geral na preparação, organização e celebração do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1956; destacaria sem dúvida a sua admirável intuição que lhe inspirou a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, da qual foi o primeiro e eficiente Secretário Geral; a criação com dom Manuel Larrain e outros do Conselho Episcopal Latino Americano, CELAM, que iria inspirar a criação pela Santa Sé de entidades congêneres para outros continentes; a sua decisiva atuação na preparação do Episcopado brasileiro para participar do Concílio Vaticano II; a motivação e o compromisso do “Pacto das Catacumbas” tão ligado à evangélica opção preferencial, não excludente, pelos pobres e ao novo modelo de vida de bispos e sacerdotes, chegando ele até a inspirar, com o apoio do Santo Padre Paulo VI, seu grande amigo, uma possível reforma da Cúria romana; seu diálogo aberto e caloroso com líderes mundiais e a sua iniciante prática de ecumenismo que pouco a pouco a vai se firmando nas diferentes igrejas e do diálogo inter-religioso entre diversas crenças, antes inconciliáveis.

A esta altura convém chamar a atenção para este ponto: não fiz neste comentário até aqui nenhuma referência à rica e variada correspondência de Dom Helder; não mencionei, como era de esperar, o seu relacionamento sempre voltado para aquelas que em feliz expressão ele chamava “minorias abraâmicas”, nas quais ele depositava uma imensa esperança; não me referi aos livros que ele escreveu, tantos e tão preciosos, obras que não desapareceram no passado, livros que conservam plena atualidade e se projetam certamente para o futuro. Da sua leitura resultaria certamente a descoberta do poeta, do homem de oração e do admirável místico que ele era.

Procedi assim por duas razões. Primeira: será impensável que todo esse tesouro seja esquecido por aqueles que estão cuidando de publicar toda a obra literária de Dom Hélder. A segunda: as duas sugestões acima expostas, singelas, despretensiosas e ingênuas, sim, mas que podem passar até como simplórias, são também um artifício no sentido acima esclarecido, ou seja, em vez de emitir a minha opinião pessoal de admirador quase apaixonado de dom Hélder, preferi apresentar o conceito que emitiram a seu respeito entidades ou personalidades do mais alto nível. Em o fazendo só podia valorizar a modesta homenagem que ora lhe estou prestando.

Não se encerrem, todavia, estas considerações sem alguma referência pessoal a gestos ou atitudes de Dom Hélder, de uma das quais sou testemunha ocular e pessoal, aquela que aconteceu no aeroporto internacional de Lisboa aí pelos anos finais da década de 80. Lá nos encontramos casualmente. Dom Hélder, de passagem para um país da Escandinávia e eu, para Roma. Havia uma conexão de voos e por isso tivemos de aguardar por umas quatro horas. Então ocorreu o que era de esperar: dom Hélder logo cercado de admiradores falou-lhes por todo esse tempo, com aquela vibração e vivacidade de comunicação características, tão suas, sobre importantes e variados temas, em dia com todos eles e atendendo a todos. Mas o que mais me impressionou, apesar da sua idade, ficou de pé durante todo aquele tempo, tendo gentilmente dispensado, embora mais de uma vez oferecida, uma cadeira para sentar-se.

A segunda, conforme me contaram, sucedeu logo após a sua posse como Arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife, ao receber em audiência uma Comissão de Coronéis que, em nome do seu comando, lhe apresentaram uma lista com mais de vinte nomes de sacerdotes, entre os quais o nome do Bispo Auxiliar dom José Lamartine Soares que, por serem subversivos, não poderiam ser tolerados pelas autoridades militares. Dom Hélder recebeu a lista, leu-a calmamente, e, para surpresa dos coronéis, tranquilamente lhes declarou: “A lista está incompleta. É preciso acrescentar-lhe mais um nome”. E, para maior surpresa e indignação, acrescentou: “O nome do Pe. Hélder”.

A terceira também a ouvi de outros. Alta noite, na sua modesta residência junto à Igreja das Fronteiras, Dom Hélder acordou surpreendido pela presença de um ladrão, um negro em sua casa. Num relance ele já estava conversando com o assaltante: “Você deve estar com fome, meu irmão”. Levou-o para a mesa, abriu a geladeira, e continuando naquele seu jeito inimitável de conversar e de convencer, ia servindo alimento ao novo irmão. Foi aí que o inesperado hóspede, ao percorrer com os olhos a sala de jantar, fixou a vista num retrato na parede: o retrato de dom Hélder. Chegava-se ao patético. Olhou para dom Hélder, olhou outra vez para o retrato, e agora, entre lágrimas: “Dom Hélder, me perdoe, por amor de Deus me perdoe! Nunca pensei na vida em atacar o senhor em sua casa!”. Acalmado por Dom Hélder e já em plena confiança, pede ao Arcebispo que lhe deixe ir-se embora. A resposta foi também outra surpresa: “Sim, meu irmão, mas eu vou acompanhar você até á porta porque o vigia não deixaria você sair assim tão à vontade”! E, à despedida, a surpresa maior: “Vá em paz, meu irmão. E quando quiser, pode voltar!”

“Esto brevis et placebis”, isto é, sede breve e agradareis. Assim nos adverte o velho adágio latino. Mas antes do ponto final, convém tecer ainda algumas considerações.

Um pergunta: a imagem de Dom Hélder é imagem de um tipo popular? De um romântico, de um sonhador? De populista ele foi acusado muitas vezes. De minha parte eu observaria que ele não se ajusta facilmente a tais parâmetros ou ícones criados por pessoas entendidas. O que, ou antes, quem ele era e foi por toda vida é bem mais o homem inteiramente devotado a viver intensamente e a propagar ardentemente seus ideais, ideais em que ele cria vitalmente. Foi assim que eu, quando menino, o vi pela primeira vez em minha cidadezinha de Acaraú: integralista, de batina preta, camisa verde, em plena campanha em prol do Integralismo de Plínio Salgado. Ele, padre novo, um tribuno na expressão perfeita da palavra, via sinceramente no Integralismo, naquela hora, a salvação da Pátria e a confirmação da fé. Por isso não se limitava, como muitos outros, ao simples apoio. Ele era coerente. Comprometido. E percorreu o Ceará, sabe Deus com quantos sacrifícios, até que os olhos se lhe abriram e ele passou a chamar essa fase da sua vida “O pecado da minha juventude”. Mudou de convicção, não de comportamento. Foi sempre um batalhador, um ardoroso apóstolo, um grande missionário do Reino de Deus.

O seu encontro com o Pe. Cícero, quando, ainda diácono, a pedido do Mons. Vigário Geral percorreu o Ceará a fim de renovar ou angariar novas assinaturas para o diário arquidiocesano “O Nordeste”. Vale a pena conhecer o que ele diz a respeito do Pe. Cícero. Registro o episódio, sem comentário, por julgá-lo conhecido pelos estudiosos.

Que conceito fazia de si mesmo o nosso Dom Hélder? Num encontro com madre Tereza de Calcutá durante o XLI Congresso Eucarístico Internacional de Filadélfia nos Estados Unidos, em 1975, perguntou-lhe a santa Religiosa como era que ele se sentia, ou digamos, quem era que ele se considerava ao receber tantos e tão vibrantes aplausos de multidões de tantos países do mundo: “Eu me sinto como se eu fosse aquele jumentinho em que Jesus ia montado na sua entrada triunfal em Jerusalém”. “Jumentinho de Jesus” e “Pe. Hélder” foram de fato os títulos de sua preferência, o primeiro, a partir daquele momento.

Se assim é que ele mesmo se chamava, como foi que o chamaram outras pessoas? O Santo Padre João Paulo II, seu grande amigo, em sua visita ao nosso país e ao Recife em 1980, num abraço fraterno que emocionou todo o Brasil, o chamou: “Dom Hélder, irmão dos pobres, meu irmão”.

Nos países por onde ele passou, aplaudido por multidões, ele era considerado o grande profeta da Igreja católica no século XX. A ele se pode aplicar o título atribuído ao Santo Padre Pio XI que enfrentou o fascismo e o nazismo do seu tempo: “Fides intrépida,” isto é: Fé intrépida, ou o título que, segundo a profecia de São Malaquias, iria ser dado ao Santo Padre João Paulo II – “Pastor et Nauta”, quer dizer: “Pastor e navegante.”

E, finalmente, sobre a sua pessoa, incluindo o seu legado, qual seria a sua contribuição para a História?

Em primeiro lugar, observe-se que por toda parte se multiplicam instituições, colégios, escolas que se intitulam com o seu nome neste nosso pais.

Além disso, do Santo Padre João Paulo II permanece em plena atuação a palavra inspirada no evangelho que em boa hora ele proclamou como apelo e desafio a toda a Igreja do nosso tempo: “Avancem para águas mais profundas” (Lc 5,4) com extraordinária repercussão e aplicação em toda parte;

Se a orientação de Dom Aloísio Lorscheider expressa nestas três palavras: “Mantenham as lâmpadas acesas” – retrato vivo da sua pessoa e correta expressão da sua visão e ação pastoral – foi escolhida para título de uma obra publicada por um grupo de seus amigos e admiradores na comemoração do primeiro aniversário do seu falecimento (23/12/2008);

Então, em se tratando de Dom Hélder, poderíamos gravar para a História estes três pensamentos:

  1. “Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo”.
  2. Meu irmão, quando descordas de mim, tu me completas. Muito obrigado!
  3. Há criaturas como cana. Mesmo tendo passado pela moenda, mesmo reduzidas a bagaço, mesmo esmagadas de todo, só sabem dar doçura.

Grande e santo Dom Hélder, junto de Deus ora por nós!

Dom Manoel Edmilson da Cruz

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