O itinerário quaresmal, que iniciamos faz pouco, é um “tempo favorável” para as práticas que formam o autêntico cristão. Nesse percurso, definido como “faxina anual”, tempo Kairótico e Kenótico, isto é, tempo de Graça e de Esvaziamento, somos convidados a fortalecer os princípios cristãos em vista da vida virtuosa, que significa a vivência dos princípios, doutrina e valores. Aqui se dá a integração e distinção entre moral dos princípios e moral das virtudes. Trata-se de integrar e não separar. Por isso o título desta coluna: princípios e virtudes. Quando não existe conexão entre o princípio e o agir, quando o “e” é substituído pelo “ou”, podemos facilmente cair na hipocrisia, legalismo e moralismo, tão criticados por Jesus. A defesa de um princípio, quando não acompanhado da virtude da caridade, por exemplo, pode se tornar intransigência e desrespeito. Já a caridade, sem princípio fundante, não tem constância, prejudica a verdade, não faz crescer e não transforma.

As virtudes morais são adquiridas por meio da educação da vontade, treino, sacrifícios e renúncias. Aqui, podemos fazer um paralelo entre exercícios quaresmais e vida virtuosa. Os três tradicionais e significativos exercícios, oração, jejum e esmola, resumem as três relações de proximidade que precisamos aprofundar para melhorar o nosso ser cristão. A oração, proximidade com Deus, que cultiva a fé, esperança e caridade; o jejum, proximidade consigo mesmo, através da temperança, fortaleza, prudência, conhecimento de si, autocontrole e sadia relação com os bens e a natureza; a esmola, proximidade com o próximo, no compromisso com a vida, no respeito, na tolerância e na opção preferencial pelos pobres e necessitados, tornando-se próximo de quem sofre, nas atitudes de ver, ter compaixão e cuidar, como nos propõe a Campanha da Fraternidade deste ano.

Estes exercícios servem para formar a pessoa virtuosa, considerando que a repetição de atos bons cria hábitos, que são virtudes, ou seja, não terminam na Páscoa, têm constância. Uma vez adquirida a forma, estando “em forma”, temos o prazer de dar continuidade aos exercícios quaresmais, no cotidiano de nossa vida, para não “sair de forma” e permanecer com alegria no caminho do Senhor Crucificado e Ressuscitado. Esta disposição firme e constante para a prática do bem, que chamamos de virtude, tem os princípios e a doutrina cristã como fundamentos. Por isso, não basta ter princípios, urge também ser virtuoso. Aqui se dá a distinção e a integração entre moral dos princípios e

moral das virtudes: doutrina e pessoa. Isso implica “o desafio de equilibrar os princípios éticos que devem nortear suas ações, com as virtudes que devem presidir suas decisões” (V. Garrafa).

Ao lado do modelo “principialista”, assumido nos diversos campos do saber, está se construindo uma nova impostação, que é o modelo da virtude, e o diálogo, entre estes dois modelos, encontra-se em curso, com tensões, é claro. No âmbito eclesial, por exemplo, o acento à Pastoral, não implica a desvalorização da Doutrina ou dos Princípios e vice-versa. O que não pode ocorrer é a contraposição que se resume no “ou, ou”. Devemos buscar o “e, e”. Virtude é justamente procurar o “meio”, o equilíbrio entre os polos. A moral baseada sobre as virtudes em respeito à moral dos princípios coloca uma maior atenção ao agente da ação, à sua vontade e à intenção do ato. Se de fato, para a moral dos princípios, a questão central é a ação correta, para a moral das virtudes é a bondade do agente e a mesma bondade da ação é avaliada mais em referência à qualidade moral do sujeito do que em referência às consequências ou ao dever.

O modelo principialista e o modelo aretológico (areté, em grego significa virtude) refletem duas concepções diversas que, a nosso ver, precisam ser integradas, fazendo com que o agir cristão se aproxime, cada vez mais, do princípio e vice-versa. Isso significa integrar, por exemplo, pastoral e doutrina, princípio e virtude, fé e vida, fala e vivência, em síntese, o que denominamos testemunho de vida cristã. Tanto o profetismo, quanto as críticas, devem ser acompanhados da vivência das virtudes, da caridade e do respeito. Sobre esse tema, assim se expressou o Papa Francisco na Mensagem para o 52º Dia Mundial das Comunicações Sociais (2018): “Libertação da falsidade e busca do relacionamento: eis aqui os dois ingredientes que não podem faltar, para que as nossas palavras e os nossos gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis. Para discernir a verdade, é preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que, ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por isso, a verdade não se alcança autenticamente, quando é imposta como algo de extrínseco e impessoal; mas brota de relações livres entre as pessoas, na escuta recíproca. Além disso, não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras. De fato, uma argumentação impecável pode basear-se em fatos inegáveis, mas, se for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que pareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a verdade dos vários enunciados: se suscitam polêmica, fomentam divisões, infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade”.

Hoje o olhar se volta mais para “quem fala” e não apenas para “o que se fala”. Eis aqui um critério para discernir e buscar a verdade das informações. É absolutamente imperioso aproximar o “como fazer” do “quem faz”. Trata-se de transformar o ser, a pessoa, para mudar também a sociedade, sempre à luz dos princípios cristãos que devem incidir, diretamente, no nosso agir.

Aristóteles relaciona a vida virtuosa à vida feliz. A felicidade é fruto da virtude e não apenas dos princípios. Toda a Doutrina Cristã tem como finalidade o ser humano, sua realização e Salvação. Por isso, o chamado à santidade na vivência das bem-aventuranças (felicidade), na concretude da vida e da realidade, experimentando na vida virtuosa as palavras do Salvador: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (At 20,35), “serão felizes se o puserem em prática” (Jo 13,17). Em síntese, o princípio sem a virtude não garante a alegria cristã! Bom prosseguimento quaresmal…

Com o meu abraço fraterno, gratidão e bênção,

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