Dom João Santos Cardoso
Bispo de Bom Jesus da Lapa
A promoção da cultura de paz é inerente à missão que a Igreja recebeu de Cristo de anunciar o Evangelho a toda criatura (Mc 16,15). Este é, antes de tudo, um anúncio de paz: “Assim que entrardes numa casa, dizei em primeiro lugar: ‘Paz seja para esta casa!’” (Lc 10, 5). E se esta for digna, a paz repousará sobre ela (Mt 10, 13). Semear a cultura de paz é dever de todo cristão. Como fazê-lo se vivemos em uma cultura permeada pela vontade de poder e dominação sobre o outro, sobre a natureza e sobre o mundo?
A Igreja no Brasil tem promovido várias Campanhas da Fraternidade visando a superação da violência e a promoção da cultura de paz. A recorrência dessa temática mostra, por sua vez, a complexidade e persistência da violência na sociedade brasileira. Temos dificuldade de percebê-la, pois a mesma foi naturalizada e a vemos como algo normal. Não nos causa indignação sua expressão letal nos homicídios cotidianos e em tantas outras formas de agressão física, verbal, psicológica e simbólica que acompanham o cotidiano.
Costumamos dizer que o Brasil é um país pacífico, hospitaleiro e acolhedor, com democracia racial e social. Essa imagem, porém, convive com várias contradições, entre as quais citamos: a proliferação do discurso do ódio; o aumento da intolerância entre as pessoas por razões ideológicas; alta taxa de homicídios que vitimiza principalmente jovens, negros, pobres, mulheres e populações vulneráveis.
A violência tem raízes profundas em nosso imaginário. Ela está na origem da formação da sociedade brasileira, fundada na dizimação de indígenas e na escravidão de africanos. Essa herança cultural determina ainda hoje nosso modo de ver a realidade social, sem contar aquelas pré-condições culturais justificadoras da realidade que nos impedem de reconhecer determinadas situações de violência (CNBB, 2018).
Também a mídia não nos ajuda a perceber a violência e promover uma cultura de paz. Ao contrário, ela banaliza a violência através de programas policiais em que o drama dos pobres é oferecido como espetáculo, defendendo a justiça como vingança social, a pena de morte, o excludente de ilicitude policial, o armamento do cidadão e o justiçamento. Em tal contexto, ganha atualidade e urgência a mensagem do Papa Francisco para fazer da não-violência um estilo de vida de uma política em favor da paz (PAPA FRANCISCO, 2017).
CULTURA DE PAZ
Embora tivéssemos iniciado a discussão com o tema da violência, o nosso propósito neste texto não é abordar essa questão, mas tratar da promoção da cultura de paz como caminho de superação da violência. De onde segue a importância de se adotar uma postura propositiva, nos discursos e nas ações, em favor da paz, da empatia, da generosidade, da reconciliação e da justiça no âmbito da pessoa e família, da comunidade e sociedade, do mundo e a criação.
A Resolução 53/243 das Nações Unidas de 1999, no Artigo Primeiro, define a Cultura de Paz como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados, entre outros princípios, no respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação. O que levou um grupo de laureados do Prêmio Nobel da Paz, no 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humano, a lançar o Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-violência, baseados nos seguintes princípios: respeitar a vida e a dignidade de cada pessoa; praticar a não-violência ativa e rejeitar a violência em todas suas formas; ser generoso; ouvir para compreender sem ceder ao fanatismo, à maledicência e ao rechaço do próximo; preservar o planeta, através de um consumo responsável e de um modelo de desenvolvimento que tenha em conta a importância de todas as formas de vida e redescobrir a solidariedade.
A expressão cultura de paz tem surgido em vários documentos eclesiais. Em 1963, no contexto da guerra fria, da corrida armamentista, da luta armada e das desigualdades econômicas, o Papa João XXIII, na encíclica Pacis in Terris (n.166), afirma que “a paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda numa ordem assentada na verdade, construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada sob os auspícios da liberdade”.
A Igreja Católica pode oferecer uma grande contribuição em prol da cultura de paz aos seus fiéis e à sociedade no âmbito da educação e da espiritualidade pessoal e familiar. Nesse campo, a Igreja dispõe de um rico patrimônio cultural e espiritual, proveniente das Sagradas Escrituras e do seu Magistério.
Jesus, que viveu em tempos violentos, nos ensinou que o verdadeiro campo de batalha, onde se defrontam a violência e a paz, é o coração humano: «Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos» (Mc 7, 21). Ele nos ofereceu uma mensagem radicalmente positiva em favor da paz, no Sermão da Montanha: pregou o amor incondicional de Deus; o perdão; ensinou os seus discípulos a amar os inimigos (Mt 5, 44) e a oferecer a outra face (Mt 5, 39). Isto constitui o núcleo da “revolução cristã” e «a magna carta da não-violência cristã». Esta não consiste «em render-se ao mal […], mas em responder ao mal com o bem (Ro 12, 17-21), quebrando dessa forma a corrente da injustiça» (PAPA FRANCISCO, 2017).
Vítima da violência, Jesus não fomentou o ódio, mas fez da não-violência seu estilo de vida. Sem fazer uso da força, defendeu a vida da mulher adúltera diante de seus acusadores que queriam apedrejá-la (Jo 8, 1-11). Na noite antes de morrer, preso injustamente, não aprovou a atitude de Pedro que recorreu à espada para defende-lo (Mt 26, 52). Até o fim, Jesus percorreu o caminho da não-violência e assim estabeleceu a paz e destruiu a hostilidade (PAPA FRANCISCO, 2017, n. 3).
A não-violência não se confunde com rendição, negligência e passividade. Segundo o Papa Bento XVI (2007), “a não-violência para os cristãos não é um mero comportamento tático, mas um modo de ser da pessoa, uma atitude de quem está tão convicto do amor de Deus e do seu poder que não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade”. O Papa Paulo VI (1968) afirma que “do Evangelho pode brotar a paz, não para tornar os homens fracos e moles, mas para substituir nas suas almas os impulsos da violência e da prepotência, pelas virtudes civis da razão e do coração dum humanismo verdadeiro”.
A Igreja no Brasil tem uma rica experiência na promoção da cultura de paz, seja em nível de documentos e pronunciamentos da CNBB, como também em nível prático através da ação pastoral desenvolvida pelas comunidades eclesiais. É verdade que “o compromisso a favor das vítimas da injustiça e da violência não é um património exclusivo da Igreja Católica, mas pertence a muitas tradições religiosas, para quem «a compaixão e a não-violência são essenciais e indicam o caminho da vida»” (PAPA FRANCISCO, 2017, 4). Entretanto, várias comunidades eclesiais, inspiradas nesse patrimônio comum, têm realizado obras sociais de apoio às vítimas da violência e ações educativas em vista de uma cultura de paz.
A instituição, em 1967, do Dia Mundial da Paz, pelo Papa Paulo VI é um exemplo do compromisso da Igreja com a promoção da cultura de paz e não-violência. Poderíamos valorizá-lo com mais criatividade e repercutir positivamente, nas comunidades e na sociedade, a mensagem que o Santo Padre faz para aquela ocasião.
Através da educação de nossos jovens e crianças, é possível fazer da não-violência um estilo de vida. Os fiéis leigos e pessoas de boa vontade presentes no mundo da educação poderiam ser estimuladas a atuarem nas escolas segundo este objetivo.
Além da escola, é necessário pensar a família como espaço de educação para a convivência civilizada, onde se aprende a cultura de paz. “As famílias exercem uma missão educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro” (PAPA FRANCISCO, 2016, 6). A respeito desse importante papel da família, o Papa Francisco, em sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017 (n. 5), fala com muita clareza:
Se a origem donde brota a violência é o coração humano, então é fundamental começar por percorrer a senda da não-violência dentro da família. […] Esta constitui o cadinho indispensável no qual cônjuges, pais e filhos, irmãos e irmãs aprendem a comunicar e a cuidar uns dos outros desinteressadamente e onde os atritos, ou mesmo os conflitos, devem ser superados, não pela força, mas com o diálogo, o respeito, a busca do bem do outro, a misericórdia e o perdão. A partir da família, a alegria do amor propaga-se pelo mundo, irradiando para toda a sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente à espiral da violência na sociedade brasileira e em muitas regiões do mundo, podemos sentir-nos impotentes ou até mesmo nos acostumar com a banalização do mal, tornando-nos indiferentes. Todavia, não podemos nos render à resignação. Antes, devemos nos empenhar “nos diferentes níveis, para realizar a justiça e a trabalhar pela paz. Na verdade, esta é dom de Deus e trabalho dos homens” (PAPA FRANCISCO, janeiro/2016).
Não há uma fórmula mágica para a superação da violência. Essa envolve um trabalho artesanal e paciente. Certamente, não basta a repressão policial, o punitivismo jurídico e promulgação de leis mais duras que coíbam o crime. São necessárias boas políticas de segurança pública integradas a políticas de inclusão social, de geração de emprego e renda, de educação, de oferta de serviços públicos à população, de urbanização em vista do bem-estar e paz social.
A Campanha da Fraternidade sobre a Segurança Pública de 2008 propôs várias iniciativas, na área da formação e prevenção, envolvendo as entidades sociais, comunitárias e poderes públicos, em direção a uma cultura de paz. É preciso mobilizar um amplo arco de parcerias e fortalecer as redes comunitárias para tornar possível a convivialidade respeitosa. É urgente fomentar uma cultura em que “a paz e segurança, mais do que discursos ou conjunto de propostas, deve constituir-se em mentalidade que determine o modo de pensar e de agir de todas as pessoas: deve ser expressão de uma cultura” (CNBB, 2008, n. 242).
Em favor da promoção de uma cultura de paz concorre a mensagem do Papa Francisco reverberada durante o Ano Jubilar da Misericórdia. A fé cristã coloca, hoje, para nós a exigência de participar do mistério divino, fazendo da misericórdia um estilo de vida, a meta a ser atingida em todo nosso agir. De modo que possamos viver a perfeição cristã deixando que a misericórdia plasme os nossos desejos, as nossas obras, o nosso pensamento e toda a nossa vida.
A Misericórdia não apenas nos responsabiliza com o outro que vive uma situação miserável, de carência e necessidade; mas também nos responsabiliza com o Criado, como nos ensina o Papa Francisco em sua mensagem pelo Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação de 2016.
A cultura de paz passa pelo caminho de conversão ecológica (PAPA FRANCISCO, 2020). Parece que ainda não tomamos consciência dos perigos da exploração irresponsável do planeta e os danos causados à criação. Vivemos uma crise moral e espiritual que está na base dos problemas ambientais e da degradação. É urgente tomar iniciativas em prol da justiça ambiental, do direito dos pobres e do serviço responsável à sociedade. Quer sejam cristãos ou não, como pessoas de fé e de boa vontade, devemos estar unidos e manifestar misericórdia para com a nossa casa comum e valorizar plenamente o mundo em que vivemos como lugar de partilha e comunhão.
Não podemos ficar indiferentes perante a perda da biodiversidade e a destruição dos ecossistemas, muitas vezes provocadas pelos nossos comportamentos irresponsáveis e egoístas. “Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de fazer isso” (PAPA FRANCISCO, 2015, n. 33). “Quando maltratamos a natureza, maltratamos também os seres humanos” (PAPA FRANCISCO, set./2016).
Na crise antropológica e ambiental em que vivemos, a fé cristã nos compromete com uma ecologia integral e nos provoca a adotar atitudes novas que repousem suas raízes em uma espiritualidade do cuidado e da sobriedade, que nos ajude a repensar nossos hábitos de consumo e nos liberte da indiferença frente à destruição do ambiente humano. É um fato muito grave a destruição do meio ambiente, pois Deus confiou o mundo aos nossos cuidados e a própria vida na sua variedade é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação (PAPA FRANCISCO, 2015, n. 5).
A cultura atual marcada pela imanência aprisiona o ser humano no imediato e não responde as suas aspirações mais profundas. Somente através de um novo humanismo, tendo como referência a pessoa de Cristo, que revelou em seu mistério a plenitude da vocação humana, é que haverá uma relação pacífica entre as comunidades e a terra. “Este caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa comum” (PAPA FRANCISCO, 2020).
Mais do que nunca, a fé cristã tem por exigência possibilitar aquilo que somente ela pode oferecer às pessoas do nosso tempo, ou seja, o acesso a uma experiência de espiritualidade e de transcendência, que nos abra mais ao encontro com o outro e à recepção do dom da criação, que reflete a beleza e a sabedoria do seu Artífice.
REFERÊNCIAS
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Fraternidade e Segurança Pública. Campanha da Fraternidade 2009: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2008.
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Fraternidade e Superação da Violência. Campanha da Fraternidade 2018: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2018.
PAPA BENTO XVI. Angelus, 18 de fevereiro de 2007.
PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Roma, 24 de novembro de 2013.
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Sì. Roma: Tipografia Vaticana, 24/05/2015.
PAPA FRANCISCO. Vencer a indiferença. Mensagem para a Celebração do 49º Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 2016.
PAPA FRANCISCO. Mensagem de Sua Santidade Papa Francisco para a Celebração do Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação: Usemos de misericórdia para com a nossa casa comum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 01de setembro de 2016.
PAPA FRANCISCO. A não-violência: estilo de uma política para a paz. Mensagem para a Celebração do 50º Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 2017.
PAPA FRANCISCO. A Paz como Caminho de Esperança: Diálogo, Reconciliação e Conversão Ecológica. Mensagem para a Celebração do 53º Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 2020.
PAPA JOÃO XXIII. Pacem in Terris (Carta Encíclica). Vaticano, 1963.
PAPA PAULO VI. Mensagem para o 1° Dia Mundial da Paz, 1968. In: Mensagens dos Papas sobre o Dia Mundial da Paz 1968-2015. Brasília: Edições da CNBB, 2015.
*Dom João é Bispo Diocesano de Bom Jesus da Lapa e Presidente do Regional Nordeste 3 da CNBB. Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor na Área de Filosofia na UESB (2005-2012) e em outras Instituições de Ensino Superior de Vitória da Conquista com ênfase em Ética, Religião, Direitos Humanos, Contemporaneidade e Linguagem com publicações sobre as temáticas assinaladas. Atualmente, além de sua missão episcopal, contribui com o Grupo de Estudo e de Pesquisa em Religião, Cultura e Saúde/UNEB.