“Somos mestres da fé porque somos sedentos de Deus”, disse pregador em retiro

A tarde de sábado, 4, e a manhã de domingo, 5, foram momentos de parada e oração para os bispos participantes da 57ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que ocorre em Aparecida (SP). O pregador do retiro foi o arquivista e bibliotecário do Vaticano, o arcebispo dom José Tolentino Mendonça.

Durante pronunciamento aos jornalistas antes do retiro, o pregador indicou os caminhos que iria seguir, ressaltando que usaria em suas reflexões, além da Sagrada Escritura e da Tradição da Igreja, autores brasileiros leigos, como Clarice Lispector, Manoel de Barros e Adélia Prado.

“Vamos andar à volta da figura de São Pedro, nos passos das aparições bíblicas. O pastor não nasce de geração espontânea, mas um bispo se constrói espiritualmente, como Pedro se construiu nos encontros com Jesus. Que a Igreja se assuma dependente da pessoa de Jesus”, afirmou aos jornalistas.

Já dentro do plenário, dom Tolentino reforçou que o retiro depende estritamente da ação de Deus.

“Aceito essa missão com sentido de humildade. Quando pregamos aos outros, na verdade pregamos a nós mesmos. Vocês estão fazendo essa experiência de forte sinodalidade. Agora, abrimos nesta sinodalidade um espaço de cenáculo. Um tempo humilde, despretensioso de disposição ao Espírito Santo. Essa hora não é nossa, não trata apenas de nossas forças e sabedoria, agora é hora do Espírito Santo”, disse logo no início de sua apresentação, já aos bispos.

E a promessa aos jornalistas se cumpriu. Dom Tolentino usou de poesia para falar da sede de Deus. Clarice Lispector, na sua ida ao Jardim Botânico, tem muito a revelar. O poema “Ato gratuito” revela uma escritora sedenta de liberdade, uma sede estranha e profunda.

“Há uma sede em nós que não tornamos oficial, explícita em nossa vida. Pode acontecer que seja difícil praticar esse tempo. Talvez seja mais fácil fugir. Contudo, a sede está lá e não podemos fazer conta de que a sede não existe. Nós, bispos, a sede de Deus existe. Não somos aqueles que temos Deus na mão ou que administramos Deus, mas somos mestres da fé porque somos sedentos de Deus. Ensinamos Deus porque nos sentimos tantas vezes vazios de Deus. Esta é nossa realidade, nossa experiência. Da aceitação desta realidade depende a qualificação espiritual de cada um”, refletiu.

É este elogio do inútil que o poeta brasileiro Manoel de Barros também faz ao citar que prefere “as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e musgo, elas podem um dia milagrar flores”.

“A maior riqueza de um homem é sua incompletude. Somos uma máquina que temos que funcionar, mas tem uma beleza e um sentido espiritual quando não funcionamos, quando aceitamos nossa inutilidade, quando rezamos não por esta intenção ou aquela, mas um rezar simplesmente. Na nossa vida episcopal essa é uma falta grande, porque tudo tem que funcionar. É importante perceber que o abandono, o imprestável, o que não funciona, também ativa o milagre”, rezou.

Para finalizar a introdução do seu retiro, o arquivista do Vaticano utilizou do Casamento, de Adélia Prado, quando ela poetizou, após ajudar seu marido a limpar peixes: “O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva”.

“Esse momento despretensioso que aqui estamos não é mais um momento qualquer, mas somos noivo e noiva, Cristo e sua Igreja. é momento de circular amor. O primado de Pedro outra coisa não é do que o primado do amor. E o primado que o bispo testemunha na sua Igreja outra coisa não é do que o primado do amor de Cristo. Somos noivo e noiva”, afirmou.

Assim dom Tolentino conduziu seu retiro, passando pela figura de Pedro, a partir do capítulo 21 de São João.

“Um bispo tem que se preocupar com tantas coisas e acabamos deixando em segundo plano amar a Jesus. Pedro coloca a túnica. A túnica é uma veste sacerdotal. Do encontro com Cristo, Pedro se reencontra, se restitui. Muitas vezes precisamos aceitar nossa nudez para reencontrarmos Cristo. intelectualizamos demais a fé. A fé não tem somente uma credibilidade racional, tem também uma credibilidade existencial, antropológica, emocional, afetiva”, continuou.

Já pelo domingo de manhã, dom Tolentino usou do Evangelho de São Lucas, a passagem do Pai Misericordioso, para refletir com os bispos.

“Misericórdia não é dar ao outro o que merece, mas oferecer ao outros precisamente o que o outro não merece. É ir mais longe, confirmar o irmão. Precisamos de um sim que seja uma confirmação. Como dizia Agostinho: ‘quero que tu sejas’. Legitimar o outro pelo meu olhar, pelo meu amor. O pai se antecipa o discurso que o filho tinha preparado. A misericórdia é um excesso de amor. Deus não vai te perdoar porque você se arrependeu, mas você vai se arrepender porque Deus te perdoou”, refletiu.

Por padre Andrey Nicioli

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