Somos salvos e libertados pela graça de Deus 

Dom Itacir Brassiani
Bispo de Santa Cruz do Sul (RS)

 

Para não dizer que não falei da Graça de Deus, passo das costumeiras reflexões de cunho social a temas espirituais. Mas aviso desde já que, segundo Jesus Cristo e o Evangelho, as ações espirituais são essencialmente materiais: repartir o pão com os famintos, dar água a quem tem sede, socorrer os doentes, visitar os presos, etc. Para os famintos, o alimento é uma necessidade humana; mas nossa reação diante deles, é uma questão espiritual. 

Depois de receber a rígida formação dos fariseus, de apostar todas as fichas no estrito cumprimento da lei e de perseguir os cristãos por causa da pouca importância que davam às imposições e interdições da lei judaica, Paulo faz uma profunda e inusitada experiência de encontro com Jesus Cristo no caminho para Damasco. E, a partir disso, descobre-se cego e limitado, necessitado de ajuda e profundamente acolhido por Jesus Cristo. 

Esse encontro com Jesus e seu Evangelho faz ruir diante dos olhos de Paulo o inteiro edifício teológico e moral que abrigava a sua fé: ele joga no lixo como desprezível tudo aquilo que antes lhe parecia precioso, que considerava privilégio e mérito adquirido pela origem judaica e pela prática rigorosa da lei. Ele descobre que a salvação não é prêmio para os cumpridores da lei, mas graça que nos vem de Deus em Jesus Cristo. 

A convicção de que somos salvos pela Graça de Deus faz parte do núcleo dinâmico da fé cristã, tanto na versão católica como protestante. E isso significa, em primeiro lugar, que ninguém chega à plena realização humana quando se enclausurando-se em seu individualismo, fechando-se numa dourada indiferença frente às necessidades alheias, confiando complacentemente no poder do dinheiro, do saber e das normas morais. 

Crer que somos salvos pela Graça significa, portanto, abandonar toda e qualquer forma de meritocracia, esta ideologia que ensina que a vida agracia os bons, que Deus abençoa os empreendedores, que o saber pode ser comprado e usado em favor da própria prosperidade, sem reconhecer sua origem e sua finalidade social e universal. Mas não há como pintar Jesus como alguém distribuindo globos de ouro aos ‘melhores’… 

Hoje, a lei que Paulo relativiza e contra a qual se rebela recebe outros nomes, entre os quais estão estes: ‘Quem pode mais, chora menos’; ‘o importante é levar vantagem em tudo’; ‘cada um para si e deus para todos’; ‘lei da oferta e da procura’; ‘o mercado e a concorrência são os únicos garantidores da justiça e do bem-estar’; ‘os direitos humanos são para os humanos direitos’; ‘faça o bem a quem é do bem’… 

Afirmar que somos salvos pela Graça de Deus significa também reconhecer que todos – homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, cidadãos e estrangeiros, católicos e protestantes, crentes e não crentes – somos pecadores acolhidos por Jesus Cristo e reconciliados com Deus. A Graça de Deus nos torna iguais, membros do mesmo corpo, herdeiros das mesmas Promessas. E nisso se realiza plenamente a humanidade que pulsa em nós e a santificação operada pacientemente pelo Espírito Santo no ventre da história. 

 

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