Dom Eurico dos Santos Veloso
Arcebispo Emérito de Juiz de Fora (MG)
Iniciamos, com a Quarta-Feira de Cinzas, mais um Tempo da Quaresma, que se estende até a Missa da Ceia do Senhor (exclusive). É o propício tempo para preparar a celebração da Páscoa, como nos ensina a Sacrosanctum Concilium 109: “Tanto na liturgia quanto na catequese litúrgica esclareça-se melhor a dupla índole do tempo quaresmal que, principalmente pela lembrança da preparação do Batismo e pela penitência, fazendo os fiéis ouvirem com mais frequência a Palavra de Deus e entregaram-se à oração, os dispõe à celebração do mistério Pascal”.
As cinzas. que são feitas dos ramos de Domingo de Ramos do ano anterior, serão aspergidas em nossas testas ou em nossas cabeças, em forma de cruz, lembrando a penitência, o arrependimento de todos os nossos pecados e a urgente conversão, em sintonia com a Campanha da Fraternidade que tem como tema “Fraternidade e Educação”, e como lema “Fala com sabedoria, ensina com amor” (cf. Pr 31,26).
A imposição das cinzas em nossas frontes é um sinal exterior de nossa disposição interior em nos voltar para o Senhor. Convertamo-nos e reconciliemo-nos com Deus “rasgando nosso coração” pelo jejum que nos liberta de nós mesmos em favor do próximo, ‘rasgando nosso coração” pela caridade que não é simples esmola daquilo que sobra, mas verdadeiro espírito cristão da partilha, “rasgando nosso coração” pela oração sincera de quem livremente se entrega à vontade do Pai do Céu.
A primeira leitura (Jl 2,12-18) mostra que Joel é, provavelmente, um sacerdote-profeta que vive no Templo depois do exílio. Fiel ao serviço da Casa de Deus, exorta o povo, que passa por uma grave carestia provocada por uma invasão de gafanhotos (1, 2-2, 10), à oração e à conversão. O próprio culto, no templo, tinha cessado (1, 13.16). O profeta, que sabe ler os sinais dos tempos, anuncia a proximidade do “dia do sennot”, e convida o povo ao jejum, à súplica e à penitência (2, 12.15-17). “Convertei-vos”, grita o profeta. O termo hebraico subjacente é schOb, que significa arrepiar caminho, regressar. O povo que virara as costas a Deus, devia voltar novamente o coração para Ele, e retomar o culto no templo, um culto autêntico, que manifestasse a conversão interior. O povo pode voltar novamente para Deus, porque Ele é misericordioso (v. 13), e pode mudar de ideia e voltar atrás (v. 14). Um amor sincero a Deus, uma fé consistente, e uma esperança que se torna oração coral e penitente, darão ao profeta e
aos sacerdotes as devidas condições para implorarem a compaixão de Deus para com o seu povo.
A segunda leitura (2Cor 5,20-6,2), “Reconciliai-vos com Deus”, é o apelo de Paulo. A reconciliação é possível, porque essa é a vontade do Pai, manifestada na obra redentora do Filho e no poder do Espírito que apoia o serviço dos apóstolos. O versículo 21 é o ponto alto do texto, pois proclama o juízo de Deus sobre o pecado e o seu incomensurável amor pelos pecadores, pelos quais não poupou o seu próprio Filho (cf. Rm 5, 8; 8, 32). Cristo carregou sobre si o pecado do mundo e expiou-o na sua própria carne. Assim, podemos apropriar-nos da sua justiça-santidade. O Inocente tornou-se pecado para que nós pudéssemos tornar justiça de Deus. E, agora, o tempo favorável para aproveitar essa graça: deixemo-nos reconciliar (katallássein) com Deus. O termo grego indica a transformação da nossa relação com Deus e, por consequência, da nossa relação com os outros homens. Acolhendo o amor de Deus, que nos leva a vivermos, não já para nós mesmos, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por nós (w. 14s.), podemos tornar-nos nova criação em Cristo (5, 18).
No Evangelho (Mt 6,1-6.16-18), Jesus pede aos seus discípulos uma justiça superior a dos escribas e fariseus, mesmo quando praticam as mesmas obras que eles: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles”. Agora, aplica esse princípio a algumas práticas religiosas do seu tempo: a esmola, o jejum e a oração. Há que estar atentos às motivações que nos levam a dar esmola, a orar, a jejuar, porque o Pai vê o que está oculto, os sentimentos profundos do coração. Se buscamos o aplauso dos homens, a vanglória, Deus nada tem para nos dar. Mas se buscamos a relação íntima e pessoal com Ele, a comunhão com Ele, seremos recompensados. Se não fizermos as boas obras com reta intenção somos hypokritoi, isto é, comediantes, e mesmo ímpios, de acordo com o uso hebraico do termo.
O período da Quaresma é o tempo propício para que nos deixemos reconciliar com Deus, não tornando vã a graça que o Altíssimo nos concedeu por meio de seu Filho Jesus: “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 5,2). Por isso, voltemo-nos para o Senhor com todo o nosso coração. Que nossas práticas e celebrações, nesta Quarta-Feira de Cinzas e na Quaresma, sejam conforme aquilo que ensinou o profeta Joel e o próprio Jesus no Sermão da Montanha: “Rasgai o coração, e não as vestes” (Jl 2,12). “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles” (Mt 6,1).
O jejum, a caridade e a oração são gestos e atitudes agradáveis a Deus, mas tão somente se nos afastam de toda vaidade e hipocrisia, e se nos levam à conversão interior – rasgar os coração – integralmente.
A nossa Quaresma deve ser vivida em espírito e vida, na verdade e na santidade. Tenhamos uma Quaresma sem hipocrisia. Com a caridade, a oração, o jejum e a mudança de vida iniciemos nosso itinerário de conversão. Vivendo a penitência e a oração, manifestemos ao Senhor nossa confiança em sua Misericórdia.
