Velai, ó Deus, sobre a vossa família!

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo de São Paulo

Há muitas maneiras de explicar a religião e a relação do homem com Deus e de Deus com o mundo: Deus, como a soberana “energia”, que o homem teme ou tenta captar para seu bem; Deus, como o inatingível, o totalmente distante do mundo, sem relação com estas realidades inconstantes, que vivem por sua conta e tentam se arranjar como podem… Ou ainda: Deus, como a solução pronta para todos os problemas e impasses, que o homem tenta controlar e ter sempre à sua disposição para resolver com milagres as situações da humana fragilidade e as ameaças do maligno… Qual será a maneira mais adequada de pensar a relação de Deus com o mundo e do homem com Deus?

Não pretendo, nas poucas linhas deste artigo, expor as várias teorias sobre a origem da religião, ou as idéias sobre Deus que há por aí. Como o Cristianismo compreende Deus, ou a relação de Deus com o mundo e do homem com Deus? Muito daria para dizer, mas uma coisa é certa: para o Cristianismo, como já era para o Judaísmo, Deus não é só uma “energia”, uma “força” ou uma “idéia”, mas um ser pessoal, um Tu, que se relaciona com o mundo e entrou em diálogo com o homem, falou e se manifestou a ele de muitos modos. Longe de ser o grande ausente, Deus está presente e próximo de suas criaturas, como supremo interessado no bem delas. Isso aparece em toda a Bíblia.

Na concepção judaico-cristã, entra um elemento a mais, que se tornou manifesto, sobretudo, através de Jesus Cristo: Deus é “pai” e ama cada pessoa e a humanidade inteira com amor extremado e cheio de ternura; conhece a cada um e traz “tatuado” na palma de sua mão o nome de cada pessoa… A Bíblia fala de Deus de maneira humana – e como poderia ser diversamente?! A linguagem é adequada e traduz bem o modo como Jesus, o Filho de Deus, nos falou de Deus e se relacionou com Ele; também é adequada e conforme a todo um modo como se define o ser e o viver cristão na pregação dos Apóstolos, desde as origens cristãs. Nosso Deus é como um Pai, que ama muitíssimo seus filhos, todos eles; também os que o abandonaram, ou fugiram de casa, como o filho pródigo…; ama também os que ainda não o conhecem e os que não querem saber de Deus.

Então, viver a fé cristã é, acima de tudo, viver uma relação familiar com Deus: de pai para filho e de filho para pai. E, como ninguém é filho de Deus, sozinho, a consequência imediata é que faz parte da expressão da fé cristã também a vivência fraterna de todos os filhos do Pai do céu. Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis no Cristianismo, com todas as suas implicações de respeito, solidariedade, compaixão, bondade, perdão, justiça. Um “Deus só para mim” não seria o do Cristianismo.

Pensando bem nisso, como se torna simples e bonito o viver cristão! Ser cristão, ou viver a nossa religião é viver a dinâmica do encontro e da relação com o Tu, na condição de filhos de Deus; podemos relacionar-nos com Deus, como os filhos fazem seu pai, com toda a simplicidade e confiança, como Jesus ensinou no Pai Nosso! A religião, neste caso, deixa de ser, antes de tudo, um conjunto de doutrinas, preceitos morais e ritos cultuais; tudo isso também faz parte, mas vem depois, como consequência do dom maravilhoso e da descoberta desta graça incomensurável: somos filhos de Deus! Deus é nosso Pai e nos ama com amor infinito! Enviou-nos seu Filho e o Espírito Santo, para manifestar-se a nós e envolver-nos com este amor inimaginável: “tanto Deus amou o mundo!” Deus pensou em nosso bem e nos quer bem, muito mais que podemos imaginar! Não estamos sozinhos neste mundo, abandonados à nossa sorte!

Por isso é que nós rezamos, de maneira tão bonita, no 5° Domingo do Tempo Comum: “Velai, ó Deus, sobre a vossa família com incansável amor!”. Somos a família de Deus! Isso mesmo: a família humana inteira, mesmo os que ainda não o conhecem ou até não querem fazer parte desta família de filhos e irmãos. Mas, de maneira especial, a “família de Deus” é formada por aqueles que o Filho congregou na sua Igreja, os “fiéis em Cristo”. Ser cristão é viver a alegria do dom; é deixar-se amar e responder ao amor. Com incansável amor!

Artigo publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO

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