Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo Auxiliar de Niterói
Que bom iniciar a Semana Santa ouvindo essas palavras de Jesus e tendo a certeza de que “Ele está no meio de nós”, em nossa casa, em nossa vida, seja qual for a situação, de calmaria ou de tempestade. Neste Domingo de Ramos acolhemos Jesus em nossa casa, neste tempo de isolamento social. Ele quer celebrar a Páscoa conosco, seus discípulos (as). Recordamos a Última Ceia, que foi celebrada em uma casa. No início da Igreja, a Santa Missa, chamada de “Fração do Pão”, também era celebrada nas casas. As Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil pedem que nossas igrejas sejam casas e que nossas casas sejam igrejas. Estamos vivenciando a sempre chamada “igreja doméstica”, a unidade em torno do Altar, por meio da participação nas transmissões, a “Comunhão Espiritual”, a Contrição, a humildade, a simplicidade e o esvaziamento (Kénosis). “Na escola de Cristo, sobe-se descendo” (Beato L. Biraghi).
No terceiro domingo da Quaresma, quando meditamos o texto da Samaritana, Jesus disse: “Mulher, crê em mim: vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém, adorareis o Pai. Mas vem a hora e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; pois são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é Espírito, e os que O adoram devem adorá-lO em espírito e verdade” (Jo 4, 21-24). Foi o “último” domingo em que celebramos, aqui no Brasil, a Santa Missa com a presença dos fiéis. Como me disse um amigo sacerdote, parece que Jesus estava nos preparando, para vivenciar profundamente, estes versículos acima indicados. Estamos privados de sair, de ir às nossas igrejas e comunidades, de participar e preparar, com tanto amor e dedicação, as belíssimas liturgias da Semana Santa, que hoje se inicia.
Como não me recordar, de quando pároco, da intensa mobilização das equipes de liturgia, canto, acolhida, comunicação e eventos, para tornar as celebrações sempre mais orantes, belas e ricas de significados que tocam direta e profundamente a vida das pessoas. Quanto trabalho, dedicação, preocupação e generosidade transbordante, por parte dos leigos e leigas. No domingo de Páscoa, apesar do cansaço físico, os rostos estavam transfigurados pela alegria de ter ajudado o povo de Deus a celebrar, de modo intenso, a Semana Santa e a Páscoa do Senhor. Não me cansava de agradecer tamanha dedicação, criatividade e generosidade.
E agora? Era inimaginável pensar a Semana Santa sem a participação do povo! Contudo, é o que podemos, no momento. “Chegou a hora e é agora, de adorar o Pai em espírito e verdade”. É hora de ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus, que sendo Deus, “esvaziou-se de sua glória, assumindo a forma de servo” (Fl 2,7). Aqui podemos estabelecer, especialmente em virtude da atual realidade, uma relação entre adoração e esvaziamento. Vamos adorar o Senhor em casa e oferecer a Ele a dor (esvaziamento) de não poder participar, presencialmente, das celebrações. Eis a nossa oferta dolorosa e por isso valiosa, certamente recebida por Deus como verdadeira adoração. Tenham a absoluta certeza, queridos irmãos e irmãs, de que vocês estarão presentes, oferecendo conosco o Sacrifício de Cristo, na simplicidade e profundidade dos Mistérios e Ritos celebrados, no tempo (hoje) que está muito além do limite do espaço (templo). O verdadeiro culto, em espírito e verdade, significa adesão a Cristo e ao seu Evangelho.
Na Oração Eucarística I, no “memento” (recordação) dos vivos, antes da Consagração, assim rezamos: “Lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos e filhas… e de todos os que circundam este altar, dos quais conheceis a fidelidade e a dedicação em vos servir. Eles vos oferecem conosco este sacrifício de louvor, por si e por todos os seus, e elevam a vós as suas preces, para alcançar o perdão de suas faltas, a segurança em suas vidas e a salvação que esperam. Na tradução italiana, o celebrante reza assim: “por eles te oferecemos e também estes te oferecem este sacrifício de louvor…”. Pelo Batismo, somos um “povo sacerdotal”, e por isso podemos oferecer, com o sacerdote e toda a Igreja, o nosso culto de louvor e gratidão, unidos ao Altar que é Cristo, ao Sacerdote que é Cristo, e ao Sacrifício, que é Cristo. Portanto, estamos unidos, conectados, vivendo a expressão muito utilizada hoje “tamojunto”. Bispos, sacerdotes, diáconos e povo de Deus, irmanados no Altar, no qual presidimos e celebramos o Sacrifício Pascal de Cristo. Esta é a nossa fé, que sempre anunciamos e que agora estamos vivendo de modo muito profundo e concreto.
Então, o que significa “adorar a Deus em espírito e verdade”? Apresentaremos agora alguns comentários, de modo sintético, acerca dessa afirmação de Jesus, para iluminar um pouco a triste realidade em que estamos inseridos.
O primeiro: Padre Silvano Fausti
“Vem a hora e é agora”: a promessa de Deus é concretizada e atualizada no agora de nossa história, para quem acolhe o Senhor, como o fizemos neste Domingo de Ramos. A adoração é dirigida ao Pai: é o amor dos filhos e filhas que amam a Deus como são amados por Ele. Trata-se de responder com amor e louvor, ao Amor recebido. Em Espírito e Verdade: O Espirito nos dá a verdade: somos filhos e Deus é Pai. O coração de quem conhece Jesus é o “lugar” da verdadeira adoração. Apenas ali, o ser humano encontra a plenitude da vida que deseja. O Pai deseja adoradores que vivam de seu amor. O nosso culto é a nossa própria carne (templo de Deus), que vive em conformidade ao amor do Pai. O novo culto não será mais ligado a um lugar particular. No dom do Filho, o conhecimento do Senhor inundará a face da terra e o seu nome será grande entre as nações. Adorar como filhos e filhas amados (as) que sabem amar. No amor, estabelecemos a comunhão de vida com o Pai e os irmãos, no único Espírito que é a vida de tudo. Este é o culto que agrada a Deus. O novo lugar do culto é Jesus, plena comunhão entre Palavra e carne, entre Deus e o homem.
O segundo: Comentário Bíblico Internacional
A Samaritana coloca a questão do verdadeiro culto a Deus. A resposta de Jesus nos versículos 21-24, surpreendeu a mulher, porque nenhum judeu “ortodoxo” teria ousado relativizar Jerusalém como lugar de culto, da maneira como fez Jesus. Ele muda o enfoque: do lugar correto para a adoração para o significado correto da adoração. Deus possibilita aos crentes uma adoração autêntica. Adorar em Espírito e verdade significa orientar a vida e ser inteiros para Deus. Jesus é o modelo de tal adorador.
O terceiro: Commento della Bibbia Liturgica
Onde Adorar a Deus: em Jerusalém ou em Garizim. Jesus deixa de lado as questões disputadas e afirma que o lugar no qual o homem pode entrar em contato com Deus é a própria pessoa de Jesus. A afirmação de que Deus é Espírito serve, principalmente, para acentuar a possibilidade de um culto completamente independente dos limites de qualquer lugar. Deus é a fonte da vida e, portanto, o inspirador do culto que lhe agrada. A verdade equivale à fidelidade de Deus, que realizou em Cristo a sua promessa de salvação. Trata-se do culto dado ao Pai por meio de Jesus, que é a Verdade.
O quarto: Santo Agostinho
“São estes adoradores que o Pai procura. E por que é que o Pai procura adoradores que o adorem, não no monte, nem no templo, mas em espírito e verdade? Porque Deus é Espírito. Se Deus fosse corpo, deveria ser adorado no monte, porque o monte é corpóreo; deveria ser adorado no templo, porque o templo é corpóreo. Somos templos vivos de Deus. Andávamos por fora e fomos introduzidos no conhecimento íntimo das coisas. Vós dizeis: Oh! Se eu encontrasse um monte alto e solitário! Eu creio que Deus atende melhor quando estou no alto dos montes, porque Ele está alto! Julgais que estais próximos de Deus pelo fato de estar no alto do monte, e julgais que mais depressa sois atendidos, como quem clama de mais perto? O Senhor habita nas alturas, mas tem fixos os olhos nos humildes. Contempla de longe os soberbos, e assiste-lhes tanto menos quanto mais altos se consideram. Procuráveis um monte? Descei para que possais atingi-lo. Procuráveis subir? As elevações devem dar-se no coração, durante a permanência no vale das lágrimas. O vale é constituído por uma baixa de terreno. Sede homens de vida interior. E se pretendeis conseguir algum lugar alto, algum lugar santo, sede no vosso interior um templo de Deus. Se quereis orar no templo, orai dentro de vós mesmos. Mas primeiro, fazei-vos templo de Deus, porque Ele atende a todo o que ora no seu templo”.
Estamos, de fato, num tempo de Graça (Kairótico) e Esvaziamento (Kenótico). Mesmo com toda esta fundamentação, acima apresentada, sabemos que nada substitui uma participação presencial, em nossas comunidades, com os nossos padres e irmãos e irmãs. Nada substitui um abraço presencial, um aperto de mão, um toque curativo e encorajador. Contudo, é o que temos para o nosso hoje e Semana Santa. Segue a saudade de viver como antes, de participar como antes, mas principalmente, o propósito de não ser como antes: todos nós temos algo a melhorar. Enquanto não dá para reiniciar, vamos nos gestando e nos recriando, no Útero de Deus. Ocasião para valorizar ainda mais a nossa Igreja, Mãe e Mestra, nossa Liturgia, Ritos e celebrações, sobretudo a Santa Missa e os demais Sacramentos que alimentam a nossa fé no Cristo Vivo e nos santificam. Tudo é ocasião de santificação, de crescimento e humanização. “Nada poderá nos separar do amor de Cristo”! Somos todos peregrinos em direção à Pátria Definitiva, à Casa do Pai.
Concluímos, com o Salmo 136, que relata a tristeza do povo hebreu durante o Exílio na Babilônia. Podemos entender melhor agora este Salmo, a dor da saudade, e pensar também não apenas nas nossas dores, mas nas dores dos médicos e profissionais da saúde, dos sofredores de rua, dos sem teto e sem trabalho, dos doentes, imigrantes, sem pátria e encarcerados. Ainda que a dor seja grande, não podemos nos esquecer de nossa Igreja, de nossas comunidades, familiares, amigos, e dos invisíveis para a sociedade e não para o novo vírus. Rezemos com o salmista e renovemos nossa fé no Deus da Vida, presença-presente constante e recriadora. Parece que estamos numa terra estrangeira… “Este cativeiro do povo deve-se entender como símbolo do nosso cativeiro espiritual” (S. Hilário). Apesar da dor e saudade, sigamos cantando, um canto novo, os nossos cantos… adorando ao Senhor em espírito e verdade. Coragem! Vai passar!
“Junto aos rios da Babilônia nos sentávamos chorando, com saudades de Sião. Nos salgueiros por ali penduramos nossas harpas. Pois foi lá que os opressores nos pediram nossos cânticos; nossos guardas exigiam alegria na tristeza: ‘Cantai hoje para nós algum canto de Sião!’ Como havemos de cantar os cantares do Senhor numa terra estrangeira? Se de ti, Jerusalém, algum dia eu me esquecer, que resseque a minha mão! Que se cole a minha língua e se prenda ao céu da boca, se de ti não me lembrar! Se não for Jerusalém minha grande alegria!”
A dor e a distância valorizam o que se busca, o que se tinha e o que se tem. A saudade não cancela a memória. Cultivemos a gratidão, por tudo e por tanto, que recebemos de Deus, da Igreja, da família, dos amigos e de toda a Criação. Enfrente com serenidade e coragem! Em frente, com fé e esperança!
Com orações, proximidade, comunhão e bênção, Dom Luiz Antonio Lopes Ricci.
Apêndice: Seguem dois textos para aumentar ainda mais o nosso amor pela Santa Eucaristia e a certeza de que vocês estão sempre, todo dia, no Altar do Senhor.
Profundo testemunho de amor à Eucaristia: Cardeal Van Thuan
“Quando fui preso, em 1975, um angustioso questionamento se apoderou de mim: “Poderei ainda celebrar a Eucaristia?” No momento em que tudo veio a faltar, a Eucaristia passou a ocupar o primeiro lugar nos meus pensamentos: O Pão da Vida. “ Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,51). Em todas as épocas, especialmente em tempos de perseguição, a Eucaristia foi sempre o segredo da vida dos cristãos: o alimento das testemunhas, o pão da esperança. Eusébio de Cesareia recorda que os cristãos não deixavam de celebrar a Eucaristia nem mesmo durante as perseguições, “todo lugar onde se sofria tornava-se para nós um lugar para celebrar […] podia ser um campo, um deserto, um navio, um alojamento, uma prisão” […]. Quando fui preso, tive de ir imediatamente e de mãos vazias. No dia seguinte, deixam-me escrever para casa, pedindo coisas mais urgentes: roupa, pasta de dente… Escrevi também: “Por favor, mandem-me um pouco de vinho, como remédio para minhas dores de estômago”. Os fiéis logo entenderam para que seria. Mandaram-me um frasco de vinho para missa, com a seguinte etiqueta “Remédio para dores de estômago”, e algumas hóstias escondidas numa tocha, para proteger contra a umidade. A minha alegria naquele instante foi inexprimível: todos os dias, com três gotas de vinho e uma gota d’agua na palma da mão, celebrava a missa […]. Todas as vezes tinha a oportunidade de estender as mãos e pregar-me na cruz com Jesus, de beber como Ele, o cálice mais amargo. Todos os dias recitava as palavras da consagração, confirmava com todo o coração e com toda a alma um novo pacto, um pacto eterno entre mim e Jesus, mediante o seu sangue misturado com o meu”. Assim, a obscuridade do cárcere tornou-se luz pascal, e a semente germinou debaixo da terra, durante a tempestade”.
“A Missa no Altar do Mundo”: Padre Pierre Teilhard de Chardin
“Senhor, mais uma vez, nestas estepes da Ásia, não tenho pão nem vinho, nem altar, então eu me elevarei acima dos símbolos até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, o vosso sacerdote, e sobre o altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo”.