Zilda Arns, mulher forte e de visão

Forte para enfrentar os desafios da missão. Mulher com visão de fé e não visionária. Precisou vir um terremoto para calar sua corajosa voz. Morreu aos 75 anos de idade, em 12 de janeiro passado, vítima do terremoto no Haiti, fazendo palestras e reuniões para a fundação da Pastoral da Criança naquele país. São vinte países já atingidos pelo seu trabalho. Assim se referiu ao acidente seu filho Nélson, integrado na mesma missão: “Ela sempre dizia que queria trabalhar até o fim, não ficar em uma cama, doente, dando trabalho. Assim ela fez. Trabalhou até o fim e morreu de pé, trabalhando. Tenho convicção de que a mãe morreu no Haiti para chamar a atenção das pessoas para as crianças daquele país. Precisamos fazer algo pelas crianças de lá.”

A inspiração do que a Pastoral da Criança poderia ser surgiu de uma conversa entre James Grant, diretor executivo da Unicef e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, em 1982, durante uma reunião da ONU. O assunto da conversa: James Grant sugeriu a Dom Paulo que a Igreja poderia ajudar a salvar milhares de crianças da desidratação se ensinasse às mães ações simples como preparar o soro oral. Essa experiência, dizia ele, poderia começar no Brasil. Dom Paulo levou a proposta para sua irmã Dra. Zilda. Ela logo sentiu que “estava sendo chamada por Deus para uma grande missão de vida.” Como médica pediatra e sanitarista, a partir de sua experiência em saúde pública, disse que “não bastava ensinar as mães a usarem o soro oral. Seria preciso, também, ensiná-las sobre a importância do pré-natal, aleitamento materno, vacinação, desenvolvimento integral das crianças, relações humanas, a fim de que elas soubessem e fossem estimuladas a cuidar melhor dos seus filhos para que “crescessem em sabedoria e graça” (Lc 2, 52).

Ao ser levada a proposta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Ivo Lorscheiter, na época  investido na presidência, indicou Dom Geraldo Majella Agnelo, então arcebispo de Londrina, hoje cardeal-arcebispo de Salvador, Bahia, para acompanhar o desenvolvimento dessa nova pastoral confiada à Dra. Zilda Arns. Implantou o projeto piloto  em Florestópolis, norte do estado do Paraná, onde havia alto índice de mortalidade infantil. Iniciada a obra, pequenina como a semente de mostarda mas que cresceu incrementada pela graça divina, esgalhou-se em milhares de líderes comunitárias voluntárias que realizaram ações básicas simples, e sem muito custo, de educação e promoção da saúde, fé e cidadania, com as gestantes e crianças menores de 6 anos de idade, dentro do contexto familiar e  comunitário. A educação e o estímulo à solidariedade que famílias e comunidades recebem da Pastoral da Criança têm alcançado, em toda parte, a redução da mortalidade infantil e materna como redução da desnutrição e violência familiar, realizando a inclusão social das famílias.

A Pastoral da Criança, desde sua fundação, é inclusiva, ecumênica e suprapartidária. Seus extraordinários resultados se devem à metodologia que une Fé e Vida à promoção das mulheres, ao sistema de capacitação descentralizada e informação, à qualidade dos materiais educativos, à sua credibilidade pela fidelidade aos objetivos, a seu baixo custo (menos de um dólar por criança/mês), à capilaridade e, sobretudo, ao apoio constante da Igreja. No Brasil, a Pastoral da Criança conta com o apoio financeiro do Governo Federal, através do Ministério da Saúde, de forma contínua, desde 1985. Pela sua credibilidade, conquistou também o apoio de governos estaduais e municipais. A Unicef é das primeiras entidades a apoiar e ajudar financeiramente.

Dados estatísticos falam por si. O total de crianças pobres, menores de 6 anos, no Brasil, segundo o censo do ano 2000: 9.606.597; acompanhadas pela Pastoral da Criança, em 2009: 1.612.007(17%); dioceses com Pastoral da Criança: 265 (100%); paróquias: 6.389 (59%); municípios com Pastoral da Criança: 4.008 (72%); comunidades acompanhadas: 40.660; líderes comunitárias atuantes: 130.671; outros voluntários nas comunidades: 108.280; média mensal de  famílias acompanhadas: 1.273.458; média mensal de gestantes acompanhadas: 83.232; emissoras de rádio com programa semanal “Viva a Vida: 1.550.
O reconhecimento da importância social para o Brasil da Dra. Zilda Arns ficou retratada, pela imprensa, nos testemunhos, com justiça, de alguns governantes com os quais ela teve encontros de trabalho. Itamar Franco:  “Tive a honra e a felicidade de conviver com a Dra. Zilda Arns e receber dela contribuição fundamental na política de combate à mortalidade infantil no meu governo. Zilda Arns, imortal brasileira, cidadã do mundo, exemplo de cidadania, solidariedade, maior ícone da ajuda internacional de nossos tempos.”  Fernando Henrique Cardoso: “Foi ela quem mostrou como é possível, com a ajuda do trabalho voluntário, enfrentar os problemas sociais e reduzir os sofrimentos dos mais pobres.” José Serra, que foi Ministro da Saúde: “Ninguém fez tanto em nosso país pela vida das crianças quanto Zilda Arns. Sua perda é dolorosa para todos nós.”  Presidente Lula,  comparecendo ao velório no Palácio das Araucárias, sede do governo do Paraná, depois de consolar a família declarou que “o importante é que as idéias que Zilda pregou em vida, durante tanto tempo, tenham encarnado na mente e nos corações das pessoas. E que, a partir do exemplo dela, sejamos mais solidários e humanistas.”

Durante a missa de corpo presente, celebrada pelo presidente da CNBB, Dom Geraldo Lírio  Rocha, o bispo de Franca (SP), Dom  Pedro Luiz Stringhini, leu a mensagem do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo: “ A vida de Zilda Arns Neumann e seu trabalho em favor das crianças e mães pobres me convencem de que a esperança nasce com a pessoa humana e se realiza plenamente no amor de Deus. Sinto que é esse o sentido da vida e ação da Dra. Zilda.” (O Globo, 16 e 17 de janeiro de 2010)

Zilda Arns morreu em missão, terminada sua conferência aos religiosos em Haiti. Deixou preparadas as pessoas que deverão continuar sua missão. Para dar continuidade à sua missão é necessário ter-se deixado atingir, como lhe aconteceu, pelas palavras do Divino Mestre: “Quem acolhe uma criança, em meu nome, a mim acolhe e quem me acolhe  acolhe aquele que me enviou” (Lc 9,48). O segredo da eficiência da Pastoral da Criança está em empenhar-se na missão, como ela fez, “em nome de Jesus”. Esta, a melhor herança que Zilda deixou, não aos que ocuparão o seu lugar – o que ninguém fará – mas a seus sucessores. A neta Carolina comoveu os jornalistas em conversa com a família, ao dizer: “Parece que ela está viajando, como sempre fazia, e daqui a pouco vai voltar.” Ela voltará sempre na lembrança de todos que assumirem sua causa.

Dom Eduardo Koaik

Tags:

leia também