No caminho para completar 30 anos de vida religiosa missionária, a assessora da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Irmã Comboniana Sandra Regina Amado, conversou com o portal da CNBB sobre sua trajetória de vida religiosa e da sua experiência de missionária no Sudão do Sul, o país Africano mais jovem do mundo, que vive atormentado pela violência e pela fome.
O país localizado no centro da África foi o escolhido pela Comissão para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da CNBB para a Jornada de Oração e Missão pela Paz que será realizada no próximo dia 1º de junho. O dia de oração é uma parceria da comissão com Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que sofre (ACN).
Natural de Tamarana (PR), diocese de Londrina, Irmã Sandra Amado é missionária Comboniana desde 1994 – fez a primeira profissão religiosa missionária consagrada em Curitiba, mas sua vocação missionária amadureceu na paróquia Nossa Senhora Aparecida em Rolim de Moura, diocese de Ji-Paraná – Rondônia.
A vida missionária começou em 1995 quando foi estudar inglês na Immaculata University, na Pensilvânia (EUA), e dois anos depois já pisava solo Africano, no país da Eritrea, capital Asmara para sua primeira experiência missionária, onde permaneceu até ser enviada para qualificação acadêmica nos EUA para ensinar literatura inglesa. Em janeiro de 2007, foi enviada para o Sudão do Sul.
“Foi nessa missão [Sudão do Sul] que me fortaleci como pessoa e como missionária consagrada aos valores do Evangelho vivendo dentro de uma cultura diversa da minha, mas que me ensinava a ser corajosa diante dos desafios”, destaca.
Leia a íntegra da entrevista:
Como foi a vida de missão no Sudão do Sul. Enfrentou a onda de violência?
O Sudão do Sul foi surpresa para mim! Cheguei lá numa época de ondas de calor insuportáveis. Quando o avião pousou e abriram-se as saídas, levei um baque de calor que pensei que não ia suportar. Não, não sofri nenhuma onda de violência, mas deu para senti-la indiretamente. Vi nos olhos dos jovens essa revolta de não saber o que era paz! Chamavam-me de “chinesa” certamente pela cor do cabelo e da pele. Eu aprendi logo a me defender dizendo que não, que era brasileira e aí as coisas mudavam um pouco, porque começavam a me perguntar do Pelé, do Ronaldinho etc. Mesmo que me olhavam com aquelas caras, missionário não se intimida, continuava meu caminho nas ruas de Juba, a capital, para a escola onde ensinava inglês no ensino médio. Fui conhecendo, compreendendo essa cultura e sua história e o porquê da juventude no início não sorrir para mim.
A mesma história dos colonizadores e colonizados numa terra rica de recursos naturais sendo explorada por estrangeiros. Todavia, construí ali uma nova relação de amizade com esse povo altivo e guerreiro por natureza. Os jovens tinham curiosidade de saber o porquê eu não usava um carro como todos os outros brancos, mas andava a pé nas ruas de Juba, a capital. Eu ria e dizia, sou professora, não tenho dinheiro para ter um carro! Mas logo tive que engolir as palavras, o calor poderia me adoecer! Mas, porém, nunca deixei de conversar e tomar chá ou qualquer outra coisa com eles. Então os casos de violência que ouvia acontecer pelo país ficavam em segundo plano.
Qual a importância dessa missão na sua vida religiosa?
Foi nessa missão que me fortaleci como pessoa e como missionária consagrada aos valores do Evangelho vivendo dentro de uma cultura diversa da minha, mas que me ensinava a ser corajosa diante dos desafios.
Qual, ou quais momentos da missão que foram mais importantes e marcantes na sua vida?
Foi marcante a minha participação no projeto Solidarity with South Sudan, um projeto da união de congregações femininas e masculinas do mundo todo, que responderam ao apelo da Igreja local do Sudão do Sul. Trabalhei na área da educação, na formação de professores no país que ficou independente em 2011: a educação é a chave para a construção da paz! Apaixonei-me por esta iniciativa. Vivíamos em comunidade, membros de congregações de nacionalidades diversas. Também os leigos/as se juntaram ao projeto, pois não há evangelização sem educação e uma educação para a reconciliação entre povos e culturas de etnias diversas dentro do mesmo território. Foi experiência de Solidariedade e entusiasmo, coragem e energia.
Ensinávamos debaixo de puxados de palha para a capacitação de professores candidatos, alguns caminhavam horas para participar desse programa no centro de treinamento em regime de internato por dois anos para proporcionar espaço adequado para treino-estudo. Presenciei ali a hostilidade entre pessoas inimigas por serem de etnias diferentes. O Sudão do Sul é formado por 69 etnias e línguas diversas. Algumas pessoas até se recusavam a comer com o “inimigo”. Pacientemente, a equipe Solidariedade imprimia os valores do respeito mútuo! A tolerância e a aceitação eram regras do projeto. Consequentemente, que ao final dos dois anos, outrora “inimigos”, agora se abraçavam entre si em lágrimas nas despedidas! Perceberam que eram irmãos iguais e semelhantes à imagem de Deus. Constatávamos que a reconciliação é fruto de um árduo e serio trabalho de acompanhamento e exercício para a construção da paz.
O que a senhora pode destacar daquele país? Conte-nos uma experiência?
Marcou o encontro com mulheres, numa cultura predominantemente patriarcal, que desejavam ser professoras, mas lhes faltava formação. Nós as ajudávamos! Nesse contexto conheci a Achol e a Achai, jovens mulheres da etnia Dinka. Para Solidarity with South Sudan, a capacitação de mulheres professoras é um objetivo. Assim, Achol e Achai vieram para o treinamento. Elas sabiam árabe e suas línguas locais, mas pouco inglês, a língua franca da educação do país. Em choque por não conseguirem se comunicar com os colegas no STTC (em inglês: Solidarity Teacher Training Center), na primeira semana já queriam desistir, vieram dizer que iam embora, pois não sabiam o suficiente da língua para continuar o programa.
Eu as encorajei a ficar e dar tempo para o estudo do inglês. Reclamaram que era difícil e não iam conseguir. Assim, em conjunto com os outros tutores do centro, desenhamos um programa específico para elas. As duas se sentiram valorizadas e se dedicaram ao trabalho. No final daquele período, as duas mulheres ficaram entre os primeiros da turma. Na sua formatura estavam tão felizes e orgulhosas pela vitória, fizemos uma foto juntas. Aprenderam o valor de animar e acompanhar as meninas de suas próprias comunidades para poderem se desenvolver e a contribuir com a educação de seu país. Acredito que meu fundador São Daniel Comboni vibrou com a minha participação do projeto Solidariedade com o Sudão do Sul!
Nesse contexto de violência em que o país vive, qual a importância dessa Jornada de Oração e Missão pela Paz no país? Porquê dessa mobilização?
O Sudão do Sul está num emaranhado de décadas em guerra, a princípio pela independência e depois pela dinâmica de poder e o controle dos recursos naturais por grandes potências. Seu povo está refém de uma lógica de exploração e corrupção pelas próprias lideranças. A jornada de oração pela paz no Sudão do Sul é uma forma de solidarizarmo-nos com este povo sofrido. A oração é uma forma de colaborar com a missão da Igreja nesse país. A força vem da oração que é o sustento de todo empenho missionário para a reconciliação e a paz!
Fotos: arquivo pessoal