Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ)

 

O Natal continua sendo celebrado durante oito dias: é a oitava de Natal como chamamos. Oito dias inteiros que nos são proporcionados para celebrarmos a grandeza do mistério de Deus que veio e vem a nós e assumiu a nossa frágil condição. Assim como tivemos um tempo de preparação para a grande festa do Natal (o Advento), inclusive com uma semana especial, temos agora, além da oitava, também o tempo do Natal, que vai até a festa do Batismo do Senhor, neste ano, dia 12 de janeiro.

Dentro da oitava de Natal, temos a festa de vários santos, como S. João, Santo Estêvão, os Santos Inocentes e no domingo celebramos a Festa da Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José. Nestes dias da oitava de Natal, vamos também celebrando as várias realidades em que o Senhor vai se inserindo e ao mesmo tempo as pessoas que vão aderindo à sua pessoa e ao seu reino, como aquele que dá a vida como S. Estêvão, como aquele que anuncia o amor ao próximo como S. João, como aqueles que entregam a sua vida mesmo que inocentes. Na Sagrada Família, temos a centralidade de Cristo que assume aquela que é a célula base da sociedade. Para nós aqui no Rio de Janeiro a celebramos com a presença da imagem peregrina de Nossa Senhora de Loreto que vem da “casa de Nossa Senhora em Loreto” que tem tudo a ver com a família de Nazaré.

Estamos também próximos do último dia do ano civil e inauguraremos o ano de 2020, com a celebração de Santa Maria Mãe de Deus, do dia da fraternidade universal e do Dia Mundial da Paz. Teremos uma grande oportunidade de revisarmos como foi o nosso ano de 2019, com espírito de gratidão a Deus e estabelecermos bons propósitos e boas metas para este ano de 2020. Desde já desejamos um feliz ano novo! Que saibamos construir um ano melhor através de nossas vidas, pois o Senhor nos dá o dom e a graça de fazê-lo. Cabe agora a nós fazermos com que esse ano assim o seja, seja com nossa vida, seja com nosso trabalho e principalmente com nosso testemunho da nossa fé.

A festa da Sagrada Família que celebramos neste final de semana nos faz contemplar a realidade familiar assumida por Jesus e nos faz olhar para a realidade da família em meio à sociedade, reconsiderando seus valores e sua importância para o bem comum.

A família é a forma básica e mais simples da sociedade. É a principal escola de todas as virtudes sociais. É a sementeira da vida social, pois é na família que se pratica a obediência, a preocupação pelos outros, o sentido de responsabilidade, a compreensão e a ajuda mútua, a coordenação amorosa entre os diversos modos de ser. Está comprovado que a saúde de uma sociedade se mede pela saúde das famílias. Esta é a razão pela qual os ataques diretos à família são ataques diretos à própria sociedade, cujos resultados não tardam a manifestar-se.

A Liturgia vai nos colocando a Sagrada Família como exemplo por um lado e ao mesmo tempo vai nos colocando as consequências positivas daquilo que é a família enquanto realidade humana, de como viver esse grande dom da família. Sabemos que hoje, em meio à grande desvalorização e tentativas de desconstrução de todas as instituições estabelecidas, testemunhamos também um ataque à instituição familiar, deixando de lado e desconsiderando a importância desta para estabelecer a convivência com a diversidade, ao mesmo tempo que estabelece os fundamentos do futuro da humanidade, pois como nos recordava São João Paulo II: o futuro da humanidade passa pela família. É na família que se aprende a viver e conviver em sociedade. Ali se aprende a partilhar, a respeitar os limites, a conviver com a diferença, a pensar no outro, a ajudar e ser ajudado.

Deus, quando quis se encarnar, escolheu a família humana para se estabelecer. A centralidade de Cristo torna-se então modelo para todas as famílias que queiram vivenciar em seus lares as maravilhas do lar de Nazaré. Cristo é o elo de união dentro de nossas casas.

No Evangelho desta Festa (Mt 2,13-15.19-23), vemos a Sagrada Família unida em momento de luta e dificuldade:

Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: ‘Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo.’ José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito. Ali ficou até à morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Do Egito chamei o meu Filho.’ Quando Herodes morreu, o anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito, e lhe disse: ‘Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos.’ José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, entrou na terra de Israel. Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judéia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno.’

Não foram para o lugar de maior fama, mas sim para uma aldeia simples onde passariam despercebidos, lugar onde haviam várias misturas étnicas, sendo um ambiente marcado pela multiplicidade e pela presença dos gentios. Aparece a Sagrada Família unida na fuga ao Egito e na volta para o território de Israel, na ida para a Galileia. Mesmo num contexto de perseguições, a centralidade de Cristo faz toda a diferença.

As outras leituras vão nos falar da realidade da família. Se por um lado nos espelhamos na Sagrada Família de Nazaré, por outro lado um olhar sobre a família à luz da Palavra de Deus e de seus planos vai também nos ser apresentado. Na leitura do livro do Eclesiástico (Eclo 3,3-7.14-17a) assim temos:

Deus honra o pai nos filhos e confirma, sobre eles, a autoridade da mãe. Quem honra o seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe. Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes, em nenhum dos dias de sua vida, a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados e, na justiça, será para tua edificação.

A valorização dos pais traz consequências práticas para a vida das pessoas. O avançar do tempo traz consequências limitantes para o ser humano, exigindo mais carinho e atenção por parte daqueles que lhes são próximos. Respeitar os pais na velhice, eles que muitas vezes vão repetir as mesmas histórias, não terão a mesma agilidade de antes; o carinho pelos mais idosos vai contar como benefício para os tempos futuros. Nos tempos atuais em que a figura dos idosos é descartada, a ponto de termos que ter estabelecido até um estatuto do idoso para que estes sejam respeitados, vale a pena recuperar os valores propostos já no Antigo Testamento, na leitura do livro sapiencial proposto na liturgia de hoje. Que diferença notaríamos nas relações humanas se colocássemos em prática a Palavra de Deus.

Na segunda leitura (Cl 3,12-21), Paulo nos recorda as relações humanas uns com os outros, e neste clima das relações humanas harmoniosas, é que vai dar os conselhos para a família:

Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição. Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos. Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças. Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele dai graças a Deus, o Pai. Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem.

Paulo enumera as virtudes que devem reinar na família: sentimentos de compaixão, de bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportar-se uns aos outros com amor, perdoar-se mutuamente. Revestir-se de caridade e ser agradecidos. Se a família não estiver alicerçada no amor cristão, será muito difícil a sua perseverança em harmonia e unidade de corações. Quando esse amor existe, tudo se supera, tudo se aceita; mas, se falta esse amor mútuo, tudo se faz sumamente pesado. E o único amor que perdura, não obstante os possíveis contrastes no seio da família; é aquele que tem o seu fundamento no amor de Deus.

Marido, mulher, pais e filhos, vivendo a partir da luz que a realidade da Boa Nova do Evangelho nos propõe. Relacionamentos que se solidifiquem a partir de seu encontro e de sua fidelidade ao Senhor.

Que a festa da Sagrada Família, dentro do contexto da oitava de natal, nos prepare para o Novo Ano que começa com o dia mundial da paz e com a celebração da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus. Aproveitemos a oitava de Natal para profundarmos cada vez mais esse sentido de presença do Senhor em nosso meio, Deus Conosco, Emanuel. Sempre é tempo de desejar que esta presença de Cristo presente no meio de nós renove as nossas vidas, nossos planos e nossas histórias. Que nesta sociedade em transformação, que nos firmemos cada vez melhor na presença de Cristo. Feliz Ano Novo para todos. Que construamos um ano melhor a partir das bênçãos de Deus.

 

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