Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)
O Dia do Nascituro, 8 de outubro, contribui para lembrar a sociedade: a vida deve ser defendida em todas as suas etapas, desde a primeira, na concepção, até a última, no declínio com a morte natural. Proteger a vida significa ser contra o aborto, mas também exige uma crítica profética à falta de políticas públicas e a outras dinâmicas sociais que igualmente matam. O Evangelho da vida está no centro da missão e da mensagem de Jesus. Por isso mesmo, a Igreja deve ser irrestritamente fiel aos valores do Evangelho da vida, buscando sempre partilhá-los. Cenários e práticas que ameaçam a existência de cada pessoa devem incomodar os cristãos. Esse incômodo aponta para a autenticidade da fé celebrada, professada e testemunhada. Os discípulos de Jesus não podem estar em paz enquanto convivem com desigualdades e com práticas que ameaçam a inviolabilidade da vida. Dissociar a vivência da fé cristã do compromisso com a defesa de cada pessoa, especialmente dos mais vulneráveis, é sério risco, um tipo de anestesia paralisante. E não basta defender ferrenhamente apenas uma etapa da vida, se esquecendo, desconsiderando ou silenciando-se em relação aos prejuízos cruéis impostos às muitas outras.
A profecia cristã tem um dimensionamento global – exige a defesa da vida em todas as suas fases. Não se pode, pois, correr o risco de cair no desequilíbrio, constituindo uma espécie de fanatismo a respeito de determinada etapa enquanto se cultiva indiferença pelas demais. Assim, as narrativas cristãs em defesa da vida, articulando linguagem e compreensão, precisam contribuir para que a sociedade reconheça: todos têm direito de viver dignamente. É preciso dedicar atenção ao conjunto de estatísticas que expõem atentados contra a vida. Essa realidade deve incomodar os discípulos de Cristo, chamados a constatar: uma sociedade que se diz cristã é ferida por vergonhosas desigualdades e privilégios – pesos ainda maiores sobre os ombros dos pobres e desvalidos.
A fé cristã vivida com autenticidade precisa inspirar nova compreensão e, consequentemente, atitudes condizentes com as muitas lições do Evangelho, orientadas para a defesa da vida em todas as suas etapas. Trata-se de insubstituível ponto de partida para os discípulos de Jesus que evita alienações, indiferenças, redução da fé a um instrumento intimista e subjetivista – rejeitando a sua essencialidade, distanciando-se do verdadeiro Deus da vida. Distanciamento comprovado pela carência de mudanças na sociedade atual, um palco de disputas e manipulações fratricidas, homicidas e feminicidas, com exclusões inaceitáveis para um autêntico cristão.
O núcleo central da missão redentora de Jesus Cristo, sublinhado em sua palavra – “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” – precisa ser cotidianamente reconhecido. A palavra forte do Mestre ilumina essa verdade: homens e mulheres são chamados a uma plenitude de vida que ultrapassa as dimensões da existência terrena, por consistir em participar da própria vida de Deus. Aí estão raízes intocáveis e inegociáveis da sacralidade da vida. E o reconhecimento de que a vida é dom sagrado leva ao compromisso com a inviolabilidade do dom de viver de cada pessoa, principalmente dos pobres e sofredores. A grandeza temporal da vida tem raízes na sublimidade da vocação sobrenatural, apontando que a vivência autêntica da fé cristã significa profética luta em defesa do ser humano.
O reconhecimento do direito à vida, considerando todas as suas etapas, é o alicerce seguro que sustenta a convivência humana e a comunidade política. Cresce, pois, a urgência de os cristãos – e dos que a eles se aliam por partilharem convicções, princípios e valores – anunciarem o Evangelho da vida. As muitas crises na sociedade brasileira – sanitária, econômica, política, ética, cultural – devem interpelar os discípulos de Jesus, homens e mulheres de boa vontade, para desarmar as armadilhas arquitetadas pela ganância e pelo lucro – com suas manipulações e inverdades que enjaulam cidadãos e cidadãs em lógicas prejudiciais ao desabrochar da vida plena, atrasando, sempre mais, o sonho de uma sociedade impulsionada pela fraternidade universal.
Os cristãos não ignorem a realidade desafiadora da contemporaneidade, hibernando em “zonas de conforto”. Ao invés disso, é urgente crescer na veneração e no compromisso com a vida do outro, especialmente do pobre e indefeso, por uma sociedade solidária e fraterna. A doutrina do Evangelho da vida só é vivida e testemunhada quando inspira a busca por rumos novos, capazes de afastar a sociedade dos cenários vergonhosos da desigualdade social e de outros atentados contra a vida, dom inviolável. É hora de novas lógicas, gerando renovadas narrativas com força libertadora. Lembra bem o Papa Francisco: ninguém se salva sozinho. Todos no mesmo barco. Valha, de verdade, o Evangelho da vida.