Lembrando João XXIII

Foi o Papa João XXIII quem na Encíclica “Pacem in Terris”, há 45 anos, tratou dos direitos da pessoa. Depois de elencar os direitos fundamentais da pessoa na vida social, o Papa João XXIII falou dos deveres conseqüentes a esses direitos.  Afirmou a “indissolúvel relação entre direitos e deveres na mesma pessoa”: “aos direitos naturais acima considerados vinculam-se, no mesmo sujeito jurídico que é a pessoa humana, os respectivos deveres. Direitos e deveres encontram na lei natural que os outorga ou impõe, o seu manancial, a sua consistência, a sua força inquebrantável”(n.28). “Assim, por exemplo, o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida, o direito a um condigno teor de vida, à obrigação de viver dignamente, o direito de investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada vez mais vasto e profundo” (n. 29). Mostrou também a “reciprocidade de direitos e deveres entre pessoas diversas: “Estabelecido este princípio, deve-se concluir que, no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais.

É que todo direito fundamental do homem encontra sua força e autoridade na lei natural, a qual, ao mesmo tempo que o confere, impõe também algum dever correspondente. Por conseguinte, os que reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói”(n. 30). Ao comemorar os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem continua atualíssima a reflexão do Papa João XXIII, sobretudo em um tempo em que todos se tornaram mestres em reivindicar seus direitos e pouco interessados em aprender seus deveres. É que as leis, todas, que regulamentam a vida em sociedade, impõem deveres às pessoas, às instituições e ao próprio Estado. As leis, por mais justas que sejam, entretanto, não lograrão seu objetivo de garantir o bem comum, se as pessoas não estiverem interiormente dispostas a assumirem seus deveres.

Donde a necessidade da educação, que o filósofo Aristóteles já havia preconizado como essencial para a construção da Paz social. Sem pessoas virtuosas, ou seja, amantes e praticantes da justiça, as leis serão letra morta. São Paulo, em contexto de reflexão teológica, já havia percebido a inutilidade da lei se a pessoa não se converte por uma adesão sincera aos valores. O que salva não é a prática externa da lei, mas a adesão sincera ao valor, o que não é possível sem uma iluminação interior, que Ele sabia vir de Jesus Cristo pelo Espírito Santo. Será possível pensar uma sociedade sem leis e sem penas impostas aos infratores? Sim, é possível pensar e trabalhar para que tal aconteça. As leis com suas sanções são necessárias  na medida em que os indivíduos não se convertem ao amor. Para quem se converteu ao amor a lei externa deixa de ser um peso. Ouçamos São Paulo: “a caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da lei”(Rom 13,10). Aquilo que a lei escrita prescreve é querido a partir de dentro pela pessoa que fez a experiência do verdadeiro amor. É de Santo Agostinho a expressão “ama e faze o que quiseres”. O reconhecimento prático dos direitos humanos continua a ser uma tarefa para toda a humanidade. Hoje, mais que nunca, a consciência de sermos uma única humanidade, solidária no bem e no mal, pede de todos nós uma profunda conversão que nos leve a encontrar no cumprimento amoroso de nossos deveres o caminho da Paz. Ouçamos a mensagem do saudoso Papa João XXIII na “Pacem in Terris” sobre a “tarefa nobilíssima, qual a de realizar a verdadeira paz, segundo a ordem estabelecida por Deus”: “Bem poucos são na verdade, em comparação com a urgência da tarefa, os beneméritos que se consagram a esta restauração da vida social conforme os critérios aqui apontados. A eles chegue o nosso público apreço, o nosso férvido convite a perseverarem em sua obra com renovado ardor. Conforta-nos ao mesmo tempo a esperança de que a eles se aliem muitos outros, especialmente dentre os cristãos.

É um imperativo do dever, é uma exigência do amor. Cada cristão deve ser na sociedade humana uma centelha de luz, um foco de amor, um fermento para toda a massa. Tanto mais o será, quanto mais na intimidade de si mesmo viver unido com Deus”(n. 163). Esta é a grande contribuição que Igreja pode oferecer à sociedade: propor pela força do evangelho aquela mudança assim descrita por Paulo VI na “Evangelii Nuntiandi”: “a finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios”(n. 18). Mãos à obra!

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

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